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jueves, 14 de octubre de 2021

 Salgueiro Maia, o símbolo da pureza inicial da Revolução dos Cravos 

Mário Beja Santos 

É uma obra de tocante homenagem, uma edição simultânea em duas línguas, Salgueiro Maia, das guerras em África à Revolução dos Cravos, por Moisés Cayetano Rosado, Edições Colibri, Associação 25 de Abril, Associação Salgueiro Maia, 2021. O retrato de uma figura que correu mundo, um homem em cima de uma Chaimite, cumpriu o seu dever, tornou-se incómodo pelo que representava, não queria pódio, coroa de louros, holofotes, transmitiu integralmente a imagem do militar que queria apenas cumprir o seu dever, restituindo a liberdade à nossa pátria.

Dirão que é mais uma biografia de Fernando José Salgueiro Maia, um olhar afetuoso sobre esse Capitão de Abril que quis regressar prontamente ao quartel e que tão precocemente partiu, abatido por uma doença incurável. O que nos prende, rememorando acontecimentos e datas que se constituem iconográficas para gente da minha idade é a admiração incontida do investigador extremeño que ajunta ao contexto histórico da descolonização as páginas mais impressivas dos treze anos de guerras coloniais, e, reconheça-se, tem sempre a maior utilidade para as novas gerações dispor de um guia de referência sobre a evolução desses teatros de operações, como se recrutava gente para a guerra, como os quadros do quadro permanente se iam apercebendo da ausência de soluções num quadro de exaustão de meios, em que era patente a elevada qualidade do armamento  dos guerrilheiros comparativamente com o utilizado pelas Forças Armadas Portuguesas.

Salgueiro Maia ingressa na Academia Militar com 20 anos de idade e dirá numa entrevista a Fernando Assis Pacheco que então acreditava no Portugal uno e indivisível, aceitava argumentação oficial e nas ambições das grandes potências. A sua comissão na Guiné foi decisiva e deixará um escrito que é hoje um documento de referência quanto à sua participação para pôr termo ao cerco de Guidage, acontecimentos ocorridos em maio de 1973, veja-se este trecho que saiu do seu punho e que consta das suas memórias Crónica dos feitos por Guidage:

“Debaixo de uma árvore estão estendidos cinco homens; o capim está todo pisado; alguns dos homens estão em cima de panos de tenda; no chão estão várias compressas brancas empastadas de vermelho; o chão parece o de um matadouro, há sangue coalhado por todo o lado, a maioria do sangue vem de um dos homens que já está cheio de moscas. Dirijo-me para ele, está com cor de cera, está praticamente nu, olha-me como que em prece, ninguém geme, o silêncio é total. Trago comigo o furriel-enfermeiro e um cabo-maqueiro. Mando-os avançar assim como as macas. Dirijo-me ao ferido mais grave, o ferimento provém-lhe da perna, tem em cima dela várias compressas empastadas de sangue; tiro as compressas e vejo que o homem não tem garrote. Pergunto estupefacto porque é que não lhe fizeram garrote. Alguém me respondeu que o enfermeiro está ferido. Começo a sentir raiva. Continuo a tirar as compressas, que foram postas a monte, sem sequer terem sido apertadas. O homem tem um estilhaço na zona da articulação do joelho. Vê-se a tíbia; toda a carne se encontra como que seca, envolvendo um buraco do tamanho de uma laranja”.

Pertence a uma plêiade de oficiais que não têm qualquer ilusão de que a guerra para os portugueses entrou num plano inclinado. O governo pretende recrutar a partir da camada de milicianos que fizeram a guerra uma nova fornada de capitães, os que passaram pela Academia Militar e já estiveram na guerra repontam, assinam documentos, fazem tremer os ministérios, de um quadro reivindicativo tudo se transfere para um movimento que conduza ao fim do regime, o autor dá-nos o apontamento desta situação até chegarmos à Operação Fim-Regime, Salgueiro Maia sai de Santarém com viaturas, antes falara com os seus subordinados, estes aderiram ao levantamento. Do Terreiro do Paço seguem para o Largo do Carmo, Salgueiro Maia fala com Marcelo Caetano, a seguir virá o general Spínola, que terá um comportamento pouco deferente com Salgueiro Maia. E temos a história bem conhecida de todo este período turbulento em que em dois momentos-chave, 11 de março e 25 de novembro, o capitão que metera Marcelo Caetano num blindado que depois o levará ao exílio, será posto em causa devido ao seu comportamento íntegro. As suas relações com Eanes passarão a meramente formais, e as chefias mais conservadoras nas Forças Armadas claramente o marginalizaram, entregam-lhe departamentos de rotina, foi colocado em serviços administrativos, destacado para os Açores, aqui apupado e ameaçado por gente da FLA – Frente de Libertação dos Açores. Em maio de 1979 volta a Santarém, mas para ficar à frente do presídio militar local ocupando um posto de um sargento ajudante, dois anos depois nomeado para Santa Margarida, com funções de instrutor. Em outubro de 1983 recebe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, mas não se sentirá compensado do cortejo de humilhações que sofreu. Também por se sentir malquisto ou incómodo, dá asas a um seu sonho cultural, torna-se membro da Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos, entrega-se a inúmeras atividades, irá concluir um curso universitário em Ciências Antropológicas e Etnológicas (1980), jamais abandonará a sua equidistância face ao poder, mas não esconde o sabor amargo da sua discriminação, como se confessa numa entrevista a Fernando Assis Pacheco, em 1988: “deploro que tendo nós realizado um ato ímpar – pela primeira vez na História da Humanidade, uma força militar realiza uma ação de destruição de um poder sem se apropriar desse poder – isto que em todos os países é relevante, passa aqui pura e simplesmente despercebido, ou então, ao contrário, serve de base para sermos marginalizados, quando não tratados como traidores à Pátria”.

Adoece, é-lhe diagnosticado um cancro intestinal, vem a falecer a 4 de abril de 1992, pela capela da Academia Militar irão passar três antigos presidentes da República, o então presidente Mário Soares, membros do governo, dirigentes políticos. O autor é sempre afetuoso com Salgueiro Maia, não deixara de ir ao cemitério de Castelo de Vide, onde este herói do 25 de Abril está sepultado em campa rasa, dedica um poema a este ícone que esteve exatamente no dia e na hora em que se finou o Estado Novo no quartel da GNR no Largo do Carmo, poema que intitula os heróis marginalizados, e assim se despede: “A figura vai ganhando relevo com o tempo, à medida que sopra o vento, expulsa as folhas caídas e a rocha firme fica despida e limpa, os alicerces sobre os quais se levanta o país, um Portugal livre, dono do seu destino, enriquecido por uma revolução na qual a união do Povo com as suas Forças Armadas deram uma lição ao mundo”.

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